Cineasta brasileiro critica filmes feitos por algoritmo na era Netflix: ‘O Poderoso Chefão e Cidade de Deus não existiriam hoje’

Se você sente dificuldade em encontrar um bom filme entre os lançamentos no catálogo da Netflix, definitivamente não está sozinho. O modelo atual de produção da empresa, que foca em conteúdos em massa, está arruinando o cinema e tornando as produções cada vez piores. Pelo menos essa é a opinião do cineasta brasileiro Bernardo Barreto.
Ao Minha Série, o ator e diretor que participou de produções como Malhação e Paraísos Artificiais, foi categórico: “o cinema é sempre uma oportunidade para fazer uma pequena revolução”. No entanto, esse poder está se perdendo na era da Netflix, onde as produções estão cada vez mais rasas e feitas com base em dados e algoritmos, segundo o mesmo.
Com mais de duas décadas no mercado do entretenimento, o artista que mora em Los Angeles viu a ascensão do streaming, desde a esperança trazida pelos investimentos iniciais até o estágio atual. Conforme o cineasta, que está para lançar um filme sobre imigração nos Estado Unidos, a lógica atual de mercado jamais permitiria a criação de filmes cultuados e criativos, como O Poderoso Chefão e Cidade de Deus.
Bernardo Barreto é ator, diretor e roteirista. Imagem: Ivi Moura.
‘O público nem sempre sabe o que quer’
Se de início Barreto viu com bons olhos o crescimento das plataformas de streaming, pela quantidade de oportunidades para profissionais do audiovisual, hoje ele é mais crítico. “Achei um máximo no começo por conta da democratização, da ampliação dos assuntos de nicho. Mas o lado negativo apareceu rápido”, avalia.
O problema, segundo ele, é que os streamings passaram a produzir conteúdos com base em métricas e tendências de consumo, o que acaba cerceando a criatividade de produtores independentes e dando vida a muitos conteúdos rasos e de baixa qualidade. “Tem uma preocupação tão grande em agradar o público, mas o público nem sempre sabe o que quer”, diz.
“Se fosse para agradar o público, os filmes que a gente mais ama na vida não teriam sido feitos.”
Barreto chama atenção para o risco de perdermos grandes obras por conta dessa lógica de mercado encabeçada por gigantes como a Netflix. “Se fosse para agradar o público, os filmes que a gente mais ama na vida não teriam sido feitos”, dispara. Ele cita exemplos como O Poderoso Chefão, Cidade de Deus e Tubarão, de Spielberg.
Filmes como Cidade de Deus poderiam não existir na era atual do streaming, segundo Bernardo Barreto.
“Você acha que alguém aprovaria Cidade de Deus hoje? Um monte de negro na tela, falando de pobreza, favela e violência? Jamais”, aponta, lembrando que muitos dos maiores clássicos foram feitos contra as expectativas de mercado. “É perigoso. Tem muito filme que só nasceu porque o diretor brigou, insistiu, acreditou. Hoje, esses filmes nem sairiam do papel”, lamenta.
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Riscos calculados
As críticas de Barreto se refletem em investimentos recentes da Netflix e de outros streamings, que apostam cada vez mais em tramas consolidadas e riscos calculados. A líder de mercado vai investir, até 2029, cerca de US$ 1,14 bilhões em produções da Espanha, que é casa de sucessos como a série Elite e La Casa de Papel. Durante os próximos quatro anos, a companhia também injetará US$ 2,5 bilhões na Coreia do Sul, fonte inacabável de doramas, que são espécies de novelas produzidas na Ásia.
A empresa também conta com projetos que podem parecer mais “experimentais”, mas que normalmente possuem uma retaguarda para garantir um mínimo sucesso. Um exemplo é o filme Frankenstein de Guillermo del Toro, que chega no final do ano. Enquanto o diretor lutou por anos para tirar a obra do papel, ele só conseguiu apoio da Netflix após se tornar um nome consolidado na indústria e ter um Oscar em sua estante.
Outra obra que chama a atenção pela diversidade é Sintonia, série brasileira que se passa na favela e conta histórias da periferia. A produção foi realizada em parceria com Kondzilla, um dos maiores canais de funk do Youtube, e traz o MC Jottape como protagonista, o que ajudou a produção a encontrar seu público-alvo logo de cara.
Quando levamos em conta esses movimentos calculados, a declaração de Bernardo Barreto começa a ganhar força. Afinal, O Poderoso Chefão ganhou vida após a Paramount comprar os direitos de um manuscrito do desconhecido autor Mario Puzo, que estava afundado em dívidas de jogo de azar. Será que a Netflix teria coragem de se arriscar em uma empreitada dessas atualmente?
Uma indústria movida pela pressa
Além da priorização de dados e algoritmos ao invés da criatividade, o cineasta que trabalha em Hollywood também fez a pressa se tornar um padrão na hora de produzir conteúdos para TV e cinema. Enquanto os roteiristas e diretores tinham tempo para maturar suas obras, hoje tudo é feito na correria, para garantir um maior volume de lançamentos.
Barreto destaca que a maior mudança que percebeu desde que se mudou para Los Angeles é a velocidade com que as tendências mudam, o que também acelera a produção. “O cenário era um quando cheguei, hoje é outro. E isso tem dois anos”, afirma.
“O mundo inteiro está ficando mais raso. Não é só o entretenimento. A gente não tem tempo mesmo para maturar.”
“No passado, um autor levava anos desde a aprovação de uma ideia até a produção. Hoje, o cara tem uma ideia e já precisa colocar no ar porque o assunto pode mudar amanhã”, explica o ator. Essa urgência, segundo Barreto, faz com que os roteiros fiquem rasos e pouco elaborados.
“O mundo inteiro está ficando mais raso. Não é só o entretenimento. A gente não tem tempo mesmo para maturar”. Segundo Bernardo, os remakes acabam sendo uma saída mais segura para os produtores nesse cenário de urgência e volume. “Pelo menos o cara já tem tudo pronto, só precisa repaginar”, afirma, mencionando produções como a novela Vale Tudo, que está de volta na TV Globo.
Produtores independentes sofrem em Hollywood
O cenário atual, movido por conteúdos rápidos e dados, tornou Hollywood bastante desafiadora para criadores independentes, de acordo com Bernardo Barreto. “O produtor independente, que antes estava feliz porque tinha onde vender seu conteúdo, agora é colocado de escanteio”, relata.
Segundo ele, enquanto existia mais liberdade ao negociar com estúdios, os streamings passaram a determinar os temas, formatos e até a estética das produções. “Ou você produz o que eles querem, ou eles simplesmente fazem o próprio conteúdo”, diz.
O brasileiro, que atualmente exibe um filme em festivais nos Estados Unidos, também aponta que lançar projetos no país está cada vez mais difícil. “Você gasta 10 milhões de dólares para fazer um filme e, dois anos depois, está tentando vender por qualquer preço”, conta Barreto.
Bernardo Barreto. Imagem: Ivi Moura.
Mesmo filmes bem recebidos pela crítica enfrentam dificuldades na hora de encontrar compradores. “Os estúdios estão tão focados em suas próprias produções que deixam de lado conteúdos incríveis que vêm de fora”, lamenta. “O cinema independente já era um investimento de risco, agora virou um negócio horroroso”, dispara.
Com essa realidade cada vez mais apertada, ele teme que, cada vez mais, só os grandes estúdios consigam financiar produções. “Se os investidores desistirem de vez, a gente só vai produzir conteúdo de massa. Tudo para agradar algoritmo”, alerta.
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Para Barreto, a vitória do longa-metragem Anora no Oscar deste ano foi um recado da indústria para tentar equilibrar o jogo. Ele reforça que gostou muito do filme e admira o diretor, mas se surpreendeu com a vitória. “Não é um filme com perfil de Oscar. Mas acho que foi um sinal claro: a gente precisa valorizar o cinema independente, senão ele vai acabar”, conclui.
Novos filmes de Bernardo Barreto a caminho
Apesar das dificuldades do mercado, Barreto revelou ao Minha Série mais detalhes sobre os seus próximos trabalhos. Além de trabalhar no longa de terror Epitaph e em um filme misterioso, ele também está prestes a trazer ao Brasil o projeto Invisíveis (The Ballad of a Hustler).
Atualmente em exibição nos festivais de cinema dos Estados Unidos, o longa-metragem conta a história de um imigrante ilegal brasileiro no país, que sai da cadeia após sete anos e descobre que tem um filho. Para piorar a situação, a mãe da criança está desaparecida.
Segundo Barreto, o filme teve uma recepção calorosa durante as exibições nos Estados Unidos, principalmente agora que o tema de imigração está em alta no país com os protestos No Kings. Apesar de ainda não ter data de lançamento no Brasil, o longa-metragem chegará em breve por aqui, garante o diretor.
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